Recebi na minha varanda uma grande amiga e recordamos os longos e intermináveis papos filosóficos que nos faziam varar as madrugadas e marcar um novo encontro para o dia seguinte. Éramos tão iguais em nossas diferenças, que outras pessoas poderiam estranhar tanta conexão. Vamos à conversa:
Adélia, quando jovem, tinha como uma de suas certezas juvenis: depois dos cinquenta anos de idade estaria pronta, plenamente madura e estável o suficiente. Biologicamente madura, eram evidentes as transformações orgânicas apreciadas no contato diário com o espelho e as revelações de exames de laboratório não deixavam sombra de dúvida; o amadurecimento orgânico estava estética e cientificamente comprovado. Porém, não tão madura emocionalmente e não tão estável quanto imaginava. Descortinava-se – em um pouco mais de meio século de existência – um universo de novas descobertas, incertezas, crises e possibilidades. Adélia vive a experiência de uma Odisseia e, de certa forma, fica feliz por estar em movimento, ainda que às vezes perceba-se cansada.
Existem momentos nos quais Adélia percebe uma consistente sensação de solidão, como se estivesse envolta em uma teia de isolamento, a qual tenta romper. E quanto mais tenta, mais sente uma espécie de impotência, um esgotamento de forças. A solidão é inerente à maturidade ou só se amadurece ao colocar-se face-a-face consigo mesma? Afinal, que coisa é a solidão? Boa? Má? Será fruto de algum tipo de orgulho existencial ou apenas uma das condições de existência do ser humano? O que faz a experiência com a solidão ser boa ou má? – reflete Adélia.
Dias atrás, foi a um evento social intimista e deparou-se com a presença de um tipo de “ex”. Adélia teve uma breve passagem com ele, permaneceu na relação cerca de um ano e meio e afastou-se (da relação e dele) há aproximadamente nove meses. Este homem de seu passado dirigiu-se a Adélia e a cumprimentou. Ela sentiu um forte desejo de cuspir na cara dele. Asco! Mas, aparentou cordialidade e acenou-lhe com a cabeça em um brevíssimo cumprimento – assim pede a urbanidade – e, rapidamente, voltou-se à roda de conversa afetiva onde já se encontrava. Em seguida, observou que seu ex estava acompanhado e mais, ele posicionou-se em um local do evento social que possibilitava o contato visual (isso quase virou uma rima textual imperfeita). O ímpeto de Adélia era dirigir-se até aquela mulher que estava na companhia daquele homem com a finalidade de lhe alertar para que tomasse cuidado com a falsidade, com a falta de caráter e a representação social pseudológica de bom moço demonstrada por um (possível) psicopata. Desejou avisar-lhe de que aquelas demonstrações de “boa vontade” em cooperar, ajudar e fazer-se presente, era tão somente uma capa, uma armadilha disfarçada de nova masculinidade filosófica; queria sinalizar para aquela mulher que o cavalheiro era um monstro sem empatia, capaz de utilizar sutis estratégias de hipnose, sem nenhum escrúpulo, para levar aquela mulher a acreditar-se profundamente frágil, esquecida – só lembrada e valorizada por ele – incapaz de controlar a sua vida financeira, escolher bem os amigos, definir roteiros de viagem, inábil para localizar, cotidianamente, onde colocava seus objetos pessoais, como as chaves do carro, celular e até a carteira, por exemplo. Uma mulher que desaprenderia, sistematicamente, a dizer não aos desejos mais obscuros daquele tipo de “ex”.
Adélia sabia que dentro de um período de aproximadamente oito meses, aquele homem começaria a refastelar-se de prazer por ter sob seu controle emocional mais uma mulher possivelmente sensível, carente, um pouco ingênua talvez, em uma nova relação manipuladora, tóxica e abusiva, como quem adiciona mais um item à sua coleção, afinal, a psiquiatria afirma que um manipulador compulsivo, contumaz, é insaciável – nem todos são assassinos – mas podem dilacerar de forma concreta uma parte da existência dos mais suscetíveis. Contudo, parafraseando o poeta, “cada um compõe a sua história e cada ser em si carrega o dom de ser capaz, de ser feliz”.
Adélia posicionou-se dando as costas ao novo casal e optou em permanecer naquela roda de conversa afetiva, na qual se encontrava. Ela constatou: foi desconfortável transitar no mesmo tempo e espaço com “aquele tipo ex”. É saudável afastar-se de tipos assim. Afastar-se, sempre!
Ela então, ocupou a mente com as lembranças desse reencontro presencial e, consequentemente, com outras lembranças do período em que conviveu com aquele homem, acompanhadas de sensações desagradáveis que se sucederam, durante dois dias seguidos ao evento social, até que…
Sorriu, ao constatar a teimosia do seu cérebro. Ela o ordenava, sem lograr êxito, para que não pensasse no “urso polar” representado por aquele tipo de “ex”. Quanto mais fazia isso, o urso polar se fortalecia e ficava maior e mais presente em seus pensamentos, beirando a angústia. Então, ao invés de lutar contra o seu cérebro, voltou a observar cada pensamento que surgia sobre aquela malfadada interseção social. Adélia atingiu o limite posterior de tempo onde os pensamentos se desfazem, como bolinhas de sabão e, “puf”, desintegram-se. Ficou satisfeita ao assenhorear-se de si, ao perceber que havia obtido êxito em conservar a sua paz de espírito, o seu equilíbrio. Em seu rosto delineou-se um sorriso genuíno.
Uma empreendedora! Adélia ocupou-se, na semana seguinte, com as estratégias no preparo de uma apresentação de negócios: mais um projeto piloto para lançamento de um produto em evento nacional. O público-alvo foi composto de profissionais especializados em sua área e apresentação foi bem sucedida. Ela recebeu elogios de um respeitado especialista, o qual chegou a registrar que a abordagem foi surpreendente e elegante, e mais, que o produto apresentava traços de ineditismo! Adélia, ao ouvir isso, sentiu uma dose de endorfina propalar-se em todo o seu corpo. Êxtase! Sim, ela gosta da sensação de possuir traços de ineditismo na maturidade, uma “cinquetona” inédita em si! Aprendeu, não sem ajuda externa, que o seu “traço de ineditismo” é uma de suas forças e decidiu utilizá-lo com sabedoria. E viver, aprender e compreender. Vida que segue.
Baseado em fatos reais.
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Parabéns, escritora!